O vento

O vento...


O vento soprava enquanto eu ia

Por caminhos tortuosos descia

No peito um coração que sofria

Mesmo assim minha alma sorria



Ser a brisa suave ele queria

Mas a pele na face enrijecia

O vento soprava enquanto eu ia

Ver onde o horizonte se perdia


Além do mar que se encolhia

Vou voar e me perder no céu um dia

Entre os anjos sei que me envolveria

Jamais provar a dor que me consumia

O vento soprava enquanto eu ia



domingo, 1 de agosto de 2010

O Ciclo Vicioso da Pobreza

Carlo Giuliani / Los Muertos de Cristo

Carlo Giuliani - Non calpestate le aiuole [da "Solo Limoni"]

Emma Goldman

O Indivíduo na Sociedade
A dúvida reina no espírito dos homens, porque a nossa civilização treme nas suas bases. As instituições atuais não inspiram mais confiança e os mais inteligentes compreendem que a industrialização capitalista vai ao encontro dos próprios fins que ela entendeu empreender.
O mundo não sabe como sair disso. O parlamentarismo e a democracia fraquejam e alguns acreditam encontrar uma salvação optando pelo fascismo ou por outras formas de governos fortes.
Do combate ideológico mundial sairão soluções para os problemas sociais urgentes que se colocam atualmente (crises econômicas, desemprego, guerra, desarmamento, relações internacionais, etc.). Ora, é destas soluções que dependem o bem estar do indivíduo e o destino da sociedade humana.
O Estado, o governo com as suas funções e poderes, torna-se assim o centro de interesses do homem que reflete. Os desenvolvimentos políticos que se têm dado em todas as nações civilizadas levam-nos a colocar estas questões: Queremos um governo forte? Deveremos preferir a democracia e o parlamentarismo? O fascismo, de uma forma ou de outra, a ditadura quer seja monárquica, burguesa ou proletária - oferecerão soluções para os males ou para as dificuldades que assaltam a nossa sociedade? Por outras palavras, conseguiremos fazer desaparecer as taras da democracia com a ajuda de um sistema ainda mais democrático, ou antes, deveremos resolver a questão do governo popular com a espada da ditadura? A minha resposta é: nem com um nem com a outra. Eu sou contra a ditadura e o fascismo, oponho-me aos regimes parlamentares e ás chamado democracias políticas. Foi com razão que se falou do nazismo como de um ataque contra a civilização. Poder-se-ia dizer o mesmo de todas as formas de ditadura, de opressão e de coação. Vejamos o que é a civilização? Todo o progresso foi essencialmente marcado pelo aumento das liberdades do indivíduo em desfavor da autoridade exterior tanto no que respeita à sua existência física como política ou econômica. No mundo físico, o homem progrediu até submeter às forças da natureza e utilizá-las em seu próprio proveito. O homem primitivo dá os seus primeiros passos na estrada do progresso assim que consegue fazer brotar o fogo, reter o vento e captar a água, ultrapassando-se a si próprio.
Que papel teve a autoridade ou o governo neste esforço de melhoramento, de invenção e descoberta? Nenhum, ou antes, nenhum que fosse positivo. É sempre o indivíduo que consegue o êxito, apesar, geralmente, das proibições, das perseguições e da intervenção da autoridade, tanto humana como divina.
Do mesmo modo do domínio político, o progresso consiste em afastar-se cada vez mais da autoridade do chefe da tribo, do clã, do príncipe e do rei, do governo e do Estado. Economicamente, o progresso significa mais bem-estar para um número sempre crescente. E culturalmente, é o resultado de tudo o que se consegue para, além disso, independência política, intelectual e psíquica cada vez maior.
Nesta perspectiva, os problemas de relação entre o homem e o Estado revestem um significado completamente novo. Não se trata mais de saber se a ditadura é preferível à democracia, se o fascismo italiano é superior ou não ao hitlerismo. Uma questão muito mais vital se coloca, então, a nós: o governo político, o Estado, será proveitoso à humanidade e qual é a sua influência sobre o indivíduo?
O indivíduo é a verdadeira realidade da vida, um universo em si próprio. Ele não existe em função do Estado, ou de esta abstração que se chama sociedade ou nação, e que não é outra coisa senão um amontoado de indivíduos. O homem foi sempre, é necessariamente, a única fonte, o único motor de evolução e de progresso.
A civilização é o resultado de um combate contínuo do indivíduo ou dos agrupamentos de indivíduos contra o Estado e até contra a sociedade, isto é, contra a maioria hipnotizada pelo Estado e submetida ao seu culto. As maiores batalhas a que o homem se entregou foram contra os obstáculos e as desvantagens artificiais que ele próprio criou e que lhe paralisaram o seu desenvolvimento. O pensamento
humano foi sempre deturpado pelas tradições, os costumes, a educação mentirosa e injusta, distribuídos para servir os interesses dos que detêm o poder e gozam de privilégios; isto é, para servir o Estado e as classes dominantes. Este conflito incessante dominou a história da humanidade.
Pode dizer-se que a individualidade, é a consciência do indivíduo de ser o que é, e de viver esta diferença. É um aspecto inerente a todo o ser humano e um fator de desenvolvimento. O Estado e as instituições sociais fazem-se e desfazem-se, enquanto que a individualidade permanece e persiste. A parte central da essência da individualidade é a expressão, o senso da dignidade e da independência, eis o seu terreno predileto. A individualidade, não é o conjunto de reflexos impessoais e mecânicos que o Estado considera como um “indivíduo”. O indivíduo não é somente a soma da hereditariedade e do meio ambiente, da causa e do efeito. É isso, mas também muito mais. O homem vivo não pode ser definido; ele é fonte de toda a vida e todos os valores, ele não é uma parte disto ou daquilo; é um todo, um todo individual, um todo que evolui e se desenvolve, mas que permanece, entretanto, um todo constante.
A individualidade assim descrita não tem nada de comum com as diversas concepções do individualismo e principalmente com aquele que eu chamarei “individualismo de direita, à americana”, que não é senão uma tentativa disfarçada de conter e de vencer o indivíduo na sua singularidade. Este dito individualismo, que sugere fórmulas como “livre empresa”, “modo de viver americano”, arrivismo e sociedade liberal, é o deixa-fazer econômico e social: a exploração das massas pelas classes dominantes com a ajuda da velhacaria legal; a degradação mental e o doutrinamento sistemático da mentalidade servil, processo conhecido pelo nome de “educação”. Esta forma de individualismo corrupto e viciado, autêntica camisa de forças da individualidade, reduz a vida a uma corrida degradante pelos bens materiais, pelo prestígio social; a sua suprema sabedoria exprime-se numa frase: “cada um por si e maldito seja o último”.
Inevitavelmente, o individualismo de direita dá como resultado a escravatura moderna, as distinções sociais aberrantes e conduz milhões de pessoas à sopa popular. Aquele individualismo é o dos senhores, enquanto que o povo é arregimentado numa casta de escravos para servir um punhado de “super-homens” egocêntricos. A América é, sem dúvida, o melhor exemplo desta forma de individualismo, sob o nome do qual a tirania política e a opressão social são elevadas à categoria de virtudes: ao mesmo tempo em que a maior aspiração, a menor tentativa de vida mais livre e mais digna serão imediatamente consideradas como antiamericanismo intolerável e condenadas, sempre na base deste mesmo individualismo.
Houve um tempo em que o Estado não existia. O homem viveu em condições naturais, sem Estado nem governo organizado. As pessoas viviam agrupadas em pequenas comunidades de algumas famílias, cultivando a terra e dedicando-se à arte e ao artesanato. O indivíduo, e mais tarde a família, era a célula base da vida social; cada um era livre e igualado ao seu vizinho. A sociedade humana desta época não era um Estado, mas sim uma associação voluntária onde cada um beneficiava da proteção de todos. Os mais velhos e os membros mais experimentados do grupo eram os guias e conselheiros. Eles ajudavam a resolver os problemas vitais, o que não significa governar e dominar o indivíduo. Só mais tarde é que se vê aparecer governo político e Estado, conseqüências do desejo dos mais fortes de tomarem vantagem sobre os mais fracos, de alguns contra o maior número. O Estado eclesiástico ou secular serviu então para emprestar uma aparência de legalidade e de direito aos danos causados por alguns à maioria. Esta aparência de direito era o meio mais cômodo de governar o povo, porque um governo que não pode existir sem o consentimento do povo, consentimento verdadeiro, tácito ou simulado. O constitucionalismo e a democracia são as formas modernas deste consentimento pretendido, inoculado por aquilo que se chama “educação”, verdadeiro doutrinamento público e privado.
O povo consente porque é convencido da necessidade da autoridade; inculcam-lhe a idéia de que o homem é mau, virulento e demasiado incompetente para saber o que é bom para si. É a idéia fundamental de qualquer governo e de toda a opressão. Deus e Estado só existem por serem apoiados por esta doutrina.
Todavia, o Estado, não é senão um nome, uma abstração. Como outras concepções do mesmo tipo, nação, raça, humanidade, ela não tem realidade orgânica. Chamar ao Estado um organismo é uma tendência doentia de fazer de uma palavra um feitiço.
A palavra Estado designa o aparelho legislativo e administrativo que trata de certas questões humanas - na maior parte das vezes, mal. Ela não contém nada de sagrado, de santidade ou de misterioso. O Estado não tem consciência, nem está encarregado de uma missão moral, mais do que estaria uma empresa comercial encarregada de explorar uma mina de carvão ou uma linha de trem.
O Estado não tem mais realidade do que os deuses ou os diabos. Tudo isto não é mais que reflexos, criações do espírito humano, porque o homem, o indivíduo é a única realidade.
O Estado não é senão a sombra do homem, a sombra do seu obscurantismo, da sua ignorância e do seu medo.
A vida começa e acaba no homem, no indivíduo. Sem ele, nada de raça, nada de humanidade, nada de Estado. Até mesmo, nada de sociedade. É o indivíduo que vive, respira e sofre. Ele desenvolve-se e progride lutando continuamente contra o feiticismo que alimenta em virtude das suas próprias invenções e em particular a do Estado.
A autoridade religiosa edificou a vida política à imagem da Igreja. A autoridade do Estado, ou seja, os “direitos” dos governantes vinham do alto; o poder, como a fé, era de origem divina. Os filósofos escreveram espessos livros provando a santidade do Estado, chegando por vezes ao ponto de lhe darem o privilégio da infalibilidade. Alguns propagaram a opinião demente que o Estado é supra-humano, que é a realidade suprema, o absoluto.
A investigação era uma blasfêmia, a servidão era a mais elevada das virtudes. Graças a tais princípios, chega-se a considerar certas idéias como evidências sagradas, não por a verdade ter sido demonstrada, mas por as repetirem sem cessar.
Os progressos da civilização são essencialmente caracterizados pelo pôr-se em questão o “divino” e o “mistério”, o pretenso sagrado e a “verdade” eterna; é a eliminação gradual do abstrato ao qual se substitui pouco a pouco o concreto. Ou seja, os fatos ganham terreno ao imaginário, o saber à ignorância, a luz à obscuridade.
O lento e difícil processo de libertação do indivíduo não se realizou com a ajuda do Estado. Pelo contrário, foi encetando um combate ininterrupto e sangrento que a humanidade conquistou o pouco de liberdade e de independência de que dispõe arrancado das mãos dos reis, dos czares e dos governos.
A personagem heróica deste longo Gólgota é o Homem. Sozinho ou unido a outros, é sempre o indivíduo que sofre e combate as opressões de toda a espécie, as potências que o escravizam e o degradam. Mais ainda, o espírito do homem, do indivíduo, é o primeiro a revoltar-se contra a injustiça e o aviltamento; o primeiro a conceber a idéia de resistência ás condições nas quais ele se debate. O indivíduo é o gerador do pensamento libertador, e também do ato libertador.
E isso não diz respeito somente ao combate político, mas a toda a variedade dos esforços humanos, em qualquer momento e em toda a parte. É sempre o indivíduo, o homem com a sua pujança de caráter e a sua vontade de liberdade que abre a via do progresso humano e transpõe os primeiros passos para um mundo melhor e mais livre; em ciências, em filosofia, no domínio das artes como no da indústria, o seu gênio eleva-se até aos cumes, concebe o impossível, materializa o seu sonho e comunica o seu entusiasmo aos outros, que se envolvem por seu turno na amálgama. No domínio social, o profeta, o visionário, o idealista que sonha com um mundo segundo o seu coração, ilumina a estrada das grandes realizações. O Estado, o governo, seja quais forem a forma, o caráter ou a tendência, quer seja autoritário ou constitucional, monárquico ou republicano, fascista, nazi ou bolchevique, é pela sua própria natureza, conservador, estático, intolerante e oposto à mudança. Se ele evolui positivamente ás vezes é por, submetido a pressões suficientemente fortes, ser obrigado a operar a mudança que se lhe impõe, pacificamente por vezes, brutalmente o mais das vezes, isto é, pelos meios revolucionários. Além disso, o conservadorismo inerente à autoridade, sob todas as suas formas, torna-se inevitavelmente reacionário. Duas razões para isso: a primeira, é que é natural para o governo, não somente resguardar o poder que detém, mas também de o reforçar, de o expandir e o de perpetuar no interior e no exterior das suas fronteiras. Quanto mais forte é a autoridade, quanto maior é o Estado e os seus poderes, mais intolerável será para ele a autoridade similar ou um poder político paralelo. A psicologia governamental impõe uma influência e um prestígio em constante aumento, nacional e internacionalmente, e ela aproveitará todas as ocasiões para engrandecê-los. Os interesses financeiros e comerciais que sustentam o governo que os representa e serve, motivam esta tendência. A razão de ser fundamental de todos os governos, sobre a qual os historiadores antigos fechavam os olhos voluntariamente, é hoje tão evidente que os próprios professores não mais podem ignorá-la. O outro fator, que obriga os governos a um conservadorismo cada vez mais reacionário, é a desconfiança inerente que ele empresta ao indivíduo, o temor da individualidade. O nosso sistema político e social não tolera o indivíduo com a sua necessidade constante de inovação. É, portanto, no estado de “legítima defesa” que o governo oprime, persegue, pune e ás vezes mata o indivíduo, ajudado nisso por todas as instituições cujo fim é preservar a ordem existente. Ele recorre a todas as formas de violência e é apoiado pelo sentimento de “indignação moral” da maioria contra o herético, o dissidente social, o rebelde político; esta maioria a quem inculcou desde há séculos o culto do Estado, que foi criada na disciplina, na obediência e na submissão ao respeito da autoridade, cujo eco se faz sentir em casa, na escola, na Igreja e na imprensa.
O maior baluarte da autoridade é a uniformidade; a menor divergência de opinião torna-se, nesse momento, o pior dos crimes. A mecanização em grande escala da sociedade atual arrasta a um acréscimo de uniformização. Encontramo-la por todo o lado presente nos hábitos, nos gostos, na escolha do vestuário, nos pensamentos, nas idéias.
No entanto é no que se convencionou chamar de “opinião pública” que se encontra o concentrado mais aflitivo. Bem poucos têm coragem de se lhe opor. Aquele que recusa submeter-se-lhe é no mesmo instante “bizarro”, “diferente”, “suspeito”, fomentador de perturbações no seio do universo estagnado e confortável
da vida moderna. Ainda mais do que a autoridade constituída, é sem dúvida a uniformidade social que acabrunha o indivíduo. O próprio fato de ele ser “único”, “diferente” separa-o e torna-o estranho à sua terra natal a até mesmo ao seu lar, ás vezes mais do que o expatriado cujos pontos de vista coincidem geralmente com os dos “indígenas”. Para um ser humano sensível, não é suficiente encontrar-se no seu país de origem para se sentir em casa, apesar do que isso pressupõe de tradições, de impressões e de lembranças de infância, tudo coisas que nos são caras. É muito mais importante encontrar certa atmosfera de pertencimento, de ter consciência de “aderir fortemente” com as pessoas e o meio ambiente, para se sentir em casa, quer se trate de relações familiares, de relações de vizinhança ou daquelas que se possuem na região mais vasta que se chama vulgarmente o seu país. O indivíduo capaz de se interessar pelo mundo inteiro, nunca se sente tão isolado, tão incapaz de partilhar os sentimentos à sua volta senão quando se encontra no seu país de origem. Antes da guerra, o indivíduo tinha pelo menos a possibilidade de escapar ao acabrunhamento nacional e familiar. O mundo parecia aberto ás descobertas, ás aspirações, ás suas necessidades. Hoje, o mundo é uma prisão e a vida uma pena de detenção perpétua para resgatar na solidão. Isso é ainda mais verdade depois da vinda da ditadura, quer a da direita quer a da esquerda. Friedrich Nietzsche qualificava o Estado de monstro frio. Como o qualificaria a besta hedionda escondida sob o manto da ditadura moderna? Não que o Estado tenha cedido alguma vez um campo de ação muito grande ao indivíduo; mas os campeões da nova ideologia estatal não lhe concedem mais o próprio pouco de que ele dispunha. “O indivíduo é nada”, clamam eles. Só a coletividade conta. Eles querem nada menos que a submissão total do indivíduo para satisfazer o apetite insaciável do seu novo deus.
Curiosamente, é no seio da “intelligentsia” britânica e americana que encontramos os mais ferozes advogados da nova causa. Neste momento, ei-los aferrados à “ditadura do proletariado’. Somente em teoria, claro. Porque, na prática, eles ainda preferem beneficiar de algumas liberdades que se lhes concede nos seus países respectivos. Eles vão à Rússia para visitas curtas, ou no papel de agentes da “revolução”, mas eles sentem-se mais seguros, mesmo assim nas suas casas. Aliás, talvez não seja somente a falta de coragem que retém estes bravos Britânicos e estes Americanos nos seus próprios países. Eles sentem, talvez inconscientemente, que o indivíduo continua a ser a coisa fundamental de qualquer associação humana e que, por mais oprimido e perseguido que seja, é ele que vencerá a longo prazo. O “gênio do homem” que não é outra coisa senão um modo diferente de qualificar a personalidade e a sua individualidade, abre caminho através do labirinto de doutrinas, através das espessas paredes da tradição e dos costumes, desafiando os tabus, enfrentando a autoridade, afrontando o ultraje e o cadafalso - para ser tido por vezes como profeta e mártir pelas gerações seguintes. Sem este “gênio do homem”, sem a sua individualidade inerente e inalterável, nós estaríamos ainda a percorrer as florestas primitivas.
Piotr Kropotkin mostrou os resultados fantásticos que se podem esperar logo que esta força que é a individualidade humana opera em cooperação com outras. O grande sábio e pensador anarquista atenuou deste modo, biológica e socialmente, a influência da teoria darwiniana acerca da luta pela existência. Na sua notável obra “Apoio Mútuo”, Kropotkin mostra que no reino animal como na sociedade humana, a cooperação - por oposição ás lutas internas - opera no sentido da sobrevivência e da evolução das espécies. Ele demonstra que, ao contrário do Estado devastador e onipotente, somente a entre ajuda e a cooperação voluntária constituem os princípios básicos duma vida livre fundamentada no individualismo e na associação. De momento, o indivíduo não é senão um peão sobre o tabuleiro de xadrez da ditadura e entre as mãos dos fanáticos do “individualismo à americana”. Os primeiros procuram, mutuamente, uma desculpa no fato de estarem perseguindo um novo objetivo. Os segundos não pretendem sequer serem inovadores. De fato, os zeladores desta “filosofia” reacionária nada aprenderam e nada esqueceram. Eles contentam-se em vigiar a sobrevivência da idéia de um combate brutal pela existência, mesmo que a necessidade deste combate tenha desaparecido por completo. É evidente que este é perpetuado exatamente por se inútil. A chamada sobre produção não é disso prova? Não é a crise econômica mundial a eloqüente demonstração de que este combate pela existência não deve a sua sobrevivência senão à cegueira dos defensores do “cada um por si”, com o risco de assistir à autodestruição do sistema? Uma das características loucas desta situação é a ausência de relação entre o produtor e o objeto produzido. O operário médio não tem qualquer contato profundo com a indústria que o emprega, fica estranho ao processo de produção do qual ele não passa de um maquinismo. E como tal, ele é substituível a todo o momento por outros seres humanos também despersonalizados. O trabalhador que exerce uma profissão intelectual ou liberal, mesmo que ele tenha a vaga impressão de ser mais independente, é apenas melhor servido. Ele também não teve grande escolha, nem mais possibilidades de encontrar o próprio caminho no seu ramo de atividade, do que o seu vizinho trabalhador manual. Geralmente são considerações materiais e algum
desejo de prestígio social que determinam a orientação do intelectual. Vem juntar-se a isso a tendência para abraçar a carreira paternal para se tornar professor, engenheiro, retomar o escritório de advogado ou de médico, etc..., porque a tradição familiar e a rotina não exigem nem grandes esforços nem personalidade. Em conseqüência, a maioria das pessoas está mal inserida no mundo do trabalho. As massas prosseguem penosamente o seu caminho, sem procurar ir mais longe, primeiro porque as suas faculdades encontram-se entorpecidas por uma vida de trabalho e de rotina; e em segundo lugar é-lhes bastante necessário ganhar a vida. Encontra-se a mesma conjura nos círculos políticos, talvez com mais intimidade. Lá, não há lugar para a livre escolha, o pensamento ou a atividade independente.
Lá, não se encontra senão marionetes apenas boas para votar e para pagar impostos. Os interesses do Estado e os do indivíduo são fundamentalmente antagônicos. O Estado e as instituições políticas e econômicas que ele fundou só podem sobreviver moldando o indivíduo de modo que ele sirva os seus interesses; eles criam-no, portanto, no respeito pela lei e pela ordem, ensinam-lhe a obediência, a submissão e a fé absoluta na sabedoria e na justiça do governo; eles exigem antes de mais o sacrifício total do indivíduo assim que o Estado tem disso necessidade, em caso de guerra, por exemplo. O Estado tem os seus interesses como superiores aos da religião e de Deus. Nos seus escrúpulos religiosos ou morais ele pune até o indivíduo que recusa combater o seu semelhante porque não há individualidade sem liberdade e a liberdade é a maior ameaça que pode pesar sobre a autoridade.
O combate que guia o indivíduo em condições tão desfavoráveis - costuma durar toda a sua vida - é tanto mais difícil quanto não se trata, para os seus adversários, de saber se ele tem ou não razão. Não é nem o valor nem a utilidade do seu pensamento ou da sua ação que levanta contra si as forças do estado e da “opinião pública”. As perseguições contra o inovador, o dissidente, o contestador, sempre foram motivadas pelo receio de que a infalibilidade da autoridade constituída fosse colocada em questão e o seu poder fosse sabotado. O homem não conhecerá a verdadeira liberdade, individual e coletiva, senão quando se libertar da autoridade e da sua fé nela. A evolução humana não é mais que um penoso caminhar nesta direção. O desenvolvimento, em si, não é a invenção nem a técnica. Rolar a 150 km à hora não é um sinal de civilização. É pelo indivíduo, verdadeira bitola social, que se mede o nosso grau de civilização; pelas suas faculdades individuais, pelas suas possibilidades de ser livremente o que ele é; de se desenvolver e de progredir sem intervenção da autoridade coercitiva e onipresente.
Socialmente falando, a civilização e a cultura medem-se pelo grau de liberdade e pelas possibilidades econômicas de que desfruta o indivíduo; pela unidade e pela cooperação social e internacional, sem restrição legal nem outro obstáculo artificial; pela ausência de castas privilegiadas; por uma vontade de liberdade e de dignidade humana; em resumo, o critério de civilização, é o grau de emancipação real do indivíduo.
O absolutismo político foi abolido porque o homem se apercebeu, no decorrer dos séculos, que o poder absoluto é um mal destruidor. Mas o mesmo acontece com todos os poderes, quer seja o dos privilégios, do dinheiro, do padre, do político ou da chamada democracia. Pouco importa o caráter específico da coação se ele veste a cor negra do fascismo, o amarelo do nazismo ou o vermelho pretensioso do bolchevismo. O poder corrompe e degrada tanto o senhor como o escravo, quer este poder esteja nas mãos do ditador, do parlamento ou do soviete. Porém, o poder duma classe é mais pernicioso ainda que o do ditador, e nada é mais terrível do que a tirania da maioria.
No decurso do longo processo histórico, o homem aprendeu que a divisão e a luta levam à destruição e que a unidade e a cooperação fazem progredir a sua causa, multiplicam as suas forças e favorecem o seu bem-estar. O espírito governamental desde sempre tenta vir ao encontro da aplicação social desta lição fundamental, exceto quando aí se trata do interesse do Estado. Os princípios conservadores e anti-sociais do Estado e da classe privilegiada
que o apóia, são responsáveis por todos os conflitos que dirigem os homens uns contra os outros. São cada vez mais numerosos os que começam a ver claro, debaixo da capa da ordem estabelecida.
O indivíduo já se deixa cegar menos pelos falsos brilhos dos princípios estatais e pelos “benefícios” do “individualismo” preconizado pelas sociedades ditas liberais. Ele esforça-se por atingir as perspectivas mais amplas das relações humanas que só a liberdade alcança. Porque a verdadeira liberdade não é um simples pedaço de papel intitulado “constituição”, “direito legal” ou “lei”. E também não é uma abstração derivada desta outra irrealidade chamada “Estado”. Não é o ato negativo de ser libertado de qualquer coisa; porque essa liberdade não é senão a liberdade de morrer de fome. A verdadeira liberdade é positiva; é a liberdade em direção a qualquer coisa, a liberdade de ser, de fazer, e os meios dados para isso.
Não pode tratar-se de um dom, mas de um direito natural do homem, de todos os seres humanos. Este direito não pode ser acordado ou conferido por nenhuma lei, nenhum governo. A necessidade, o desejo ardente faz-se sentir em todos os indivíduos. A desobediência a todas as formas de coação é s sua expressão instintiva. Rebelião e revolução são tentativas mais ou menos conscientes e sociais, são as expressões fundamentais dos valores humanos. Para alimentar estes valores, a comunidade deve compreender que o seu mais sólido apoio, o mais durável, é o indivíduo.
No domínio religioso como no domínio político, fala-se de abstrações crendo que se trata de realidades. Mas quando se vem tratar verdadeiramente de coisas concretas, parece que a maioria das pessoas é incapaz de lhes encontrar um interesse vital. É talvez porque a realidade é demasiado terra-a-terra, muito fria para acordar a alma humana. Só os assuntos diferentes, pouco comuns, aumentam o entusiasmo. Dito de outra forma, o ideal que faz saltar a faísca da imaginação e do coração humano. É preciso um pouco de ideal para fazer sair o homem da inércia e da monotonia da sua existência e transformar o vil escravo em personagem heróica.
É aqui que intervém evidentemente o opositor marxista cujo marxismo ultrapassa, aliás, o do próprio Marx. Para aquele, o homem não é senão uma figurinha nas mãos desta onipotência metafísica que se chama determinismo econômico, mais vulgarmente luta de classes. A vontade do homem, individual e coletiva, a sua vida psíquica, a sua orientação intelectual, tudo isso conta bem pouco para o nosso marxista e não afeta em nada as suas concepções da história humana. Nenhum estudante inteligente negaria a importância do fator econômico do progresso social e no desenvolvimento da humanidade. Mas só um espírito obtuso e obstinadamente doutrinário se recusará a ver o papel importante da idéia, enquanto concepção da imaginação e resultado das aspirações do homem.
Seria em vão e desnecessário tentar comparar dois fatores da história humana. Nenhum fator pode ser considerado, por si só, como fator decisivo do conjunto dos comportamentos individuais e sociais. Somos muito pouco avançados em psicologia humana, talvez não saibamos nunca mesmo o bastante para pesar e medir os valores relativos de este ou aquele fator dominante do comportamento humano. Formular tais dogmas, nas suas conotações sociais, não é senão fanatismo; apesar disso, ver-se-á certa utilidade no fato de esta tentativa de interpretação político-econômica da história provar a persistência da vontade humana e refutar os argumentos dos marxistas.
Felizmente, certos marxistas começam a ver que o seu Credo não constitui toda a verdade; afinal de contas Marx era um ser humano, demasiado humano para ser infalível. As aplicações práticas do determinismo econômico na Rússia abrem, atualmente, os olhos dos marxistas mais inteligentes. Pode-se presenciar, com efeito, operarem-se reajustamentos ao nível dos princípios marxistas nas fileiras socialistas e até nas comunistas dos países europeus. Eles compreendem lentamente que a sua teoria não teve suficientemente em conta o elemento humano, “des Menschen” como o sublinha um jornal socialista. Por importante que ele seja, o fator econômico não é ainda suficiente para determinar por si só o destino de uma sociedade. A regeneração da humanidade não se alcançará sem a aspiração, a força energética de um ideal. Este ideal, para mim, é a anarquia, que não tem evidentemente nada a ver com a interpretação errônea que os adoradores do Estado e da autoridade têm aptidão para espalhar. Esta filosofia lança as bases de uma ordem social nova, fundada sobre as energias libertadas do indivíduo e a associação voluntária dos indivíduos libertadores. De todas as teorias, a Anarquia é a única a proclamar que a sociedade deve estar ao serviço do homem e não o homem ao serviço da sociedade. O único fim legítimo da sociedade é o de acudir ás necessidades do indivíduo e de ajudá-lo a realizar os seus projetos. Só então ela se justifica e participa no progresso da civilização e da cultura. Eu sei que os representantes dos partidos políticos e os homens que lutam ferozmente pelo poder me classificarão de anacronismo incorrigível. Pois bem, eu aceito alegremente esta acusação. É para mim um conforto saber que a sua histeria é falha de paciência e que os seus elogios são sempre temporários. O homem deseja libertar-se de todas as formas de autoridade e de poder e não serão os discursos fragorosos que o impedirão de quebrar sempre as suas grilhetas. Os esforços do homem devem prosseguir e prosseguirão.

Oscar Wilde

Desobediência: A virtude Original do Homem
(em The Soul of Man under Socialism, 1891)
Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas. Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes - e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridícula de restituição parcial, uma esmola sentimental, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quanto ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.
Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. O pregresso é uma conseqüência da desobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve - o que para muitos é uma forma de roubo.
Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é melhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles, mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender que um homem aceite as leis que protegem a propriedade privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma de atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concorda dar com a sua continuidade.
Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradante e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência de seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoais intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vive e semeiam o descontentamento nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura nos EUA não foi uma conseqüência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de certos agitadores vindos de Boston e de outros lugares, que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema. Foram eles, sem dúvida que começaram tudo. É curioso observar que dos próprios escravos eles só receberam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quando a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação. Para o pensador, o fato mais trágico na Revolução Francesa não foi que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.